XV






As vidas sucessivas – As crianças prodígio

e a hereditariedade


Podem-se considerar certas manifestações precoces do gênio como outras tantas provas das preexistências, em razão de serem uma revelação dos trabalhos realizados pela alma em experiências anteriores.


Os fenômenos desse gênero, de que fala a História, não podem ser fatos desconexos, desligados do passado, produzindo-se ao acaso no vácuo dos tempos e do espaço; demonstram, ao contrário, que o princípio organizador da vida em nós é um ser que chega a este mundo com um passado inteiro de trabalho e evolução, resultado de um plano traçado e de um alvo para o qual ele se dirige através de suas existências sucessivas.


Cada encarnação encontra, na alma que recomeça vida nova, uma cultura particular, aptidões e aquisições mentais que explicam sua facilidade para o trabalho e seu poder de assimilação; por isso dizia Platão: “Aprender é recordar-se!”


A lei da hereditariedade vem muitas vezes obstar, até certo ponto, a essas manifestações da individualidade, porque é com os elementos fornecidos pela hereditariedade que o Espírito põe a seu jeito o seu invólucro; contudo, a despeito das dificuldades materiais, vê-se manifestarem-se em certos seres, desde a mais tenra idade, faculdades de tal modo superiores e sem nenhuma relação com as dos seus ascendentes, que não se pode, não obstante todas as sutilezas da casuística materialista, relacioná-las com qualquer causa imediata e conhecida.


Tem-se citado muitas vezes o caso de Mozart, que executou uma sonata no piano aos 4 anos e, aos 8, compôs uma ópera. Paganini e Teresa Milanollo, ainda crianças, tocavam violino de forma magistral. Liszt, Beethoven e Rubinstein faziam-se aplaudir aos 10 anos. Michelangelo e Salvatore Rosa revelaram-se de repente com talentos imprevistos. Pascal, aos 12 anos, descobriu a geometria plana, e Rembrandt, antes de saber ler, desenhava como um grande mestre.(162)


Napoleão fez-se notar por sua aptidão prematura para a guerra. Já na infância, não brincava de soldadinho como as crianças de sua idade, mas com um método extraordinário, que parecia ser invenção sua.


O século XVI legou-nos a memória de um poliglota prodigioso, Jacques Chrichton, que Scaliger denominava um “gênio monstruoso”. Era escocês e, aos 15 anos, discutia em latim, grego, hebraico ou árabe, sobre qualquer assunto. Havia conquistado o grau de mestre aos 14 anos.


Henrique de Heinecken, nascido em Lübeck, em 1721 falou, quase ao nascer; aos 2 anos sabia três línguas; aprendeu a escrever em alguns dias e dentro de pouco tempo exercitava-se em pronunciar pequenos discursos; com 2 anos e meio fez exame de Geografia e História antiga e moderna. Seu único alimento era o leite da ama; quiseram desmamá-lo, depereceu e morreu em Lübeck, em 27 de junho de 1725, de 5 para 6 anos de idade, afirmando suas esperanças na outra vida. “Era – dizem as Mémoires de Trévoux – delicado, enfermiço, e muitas vezes estava doente.” Essa criança fenomenal teve completo conhecimento de seu próximo fim. Falava disso com serenidade pelo menos tão admirável como sua ciência prematura e quis consolar os pais dirigindo-lhes palavras de alento que ia buscar em suas crenças comuns.


A História dos últimos séculos assinala grande número dessas crianças-prodígio.


O jovem Van der Kerkhove, de Bruges, morreu aos 10 anos e 11 meses, em 12 de agosto de 1873, deixando 350 pequenos quadros magistrais, alguns dos quais, diz Adolphe Siret, membro da Academia Real de Ciências, Letras e Belas-Artes, da Bélgica, poderiam ser assinados por nomes como Diaz, Salvatore Rosa, Corot, Van Goyen, etc.


Outro menino, William Hamilton, estudava o hebraico aos 3 anos e aos 7 possuía conhecimentos mais extensos do que a maior parte dos candidatos ao magistério. “Estou vendo-o ainda – dizia um de seus parentes – responder a uma pergunta difícil de Matemática, afastar-se depois, correndo aos pulinhos e puxando o carrinho com que andava a brincar.” Aos 13 anos conhecia doze línguas, aos 18 pasmava toda a gente da vizinhança, a tal ponto que um astrônomo irlandês dizia dele: “Eu não digo que ele será, mas que já é o primeiro matemático do seu tempo.”


Neste momento (1908) a Itália se honra de possuir um lingüista fenomenal, o Sr. Trombetti, que excede muito aos seus antigos compatriotas, o célebre Pico de Mirandola e o prodigioso Mezzofanti, o cardeal que discursava em 70 línguas.


Trombetti nasceu de uma família de bolonheses pobres e completamente ignorantes. Aprendeu sozinho, na escola primária, francês e alemão e, no fim de dois meses, lia Voltaire e Goethe; aprendeu o árabe com a simples leitura da vida de Abd-el-Kader, escrita na mesma língua. Um persa, de passagem por Bolonha, ensinou-lhe a sua língua em algumas semanas. Aos 12 anos aprendeu, por si só e simultaneamente, latim, grego e hebraico e, em seguida, estudou quase todas as línguas vivas ou mortas. Seus amigos asseveram que ele conhece hoje cerca de trezentos dialetos orientais; o Rei da Itália nomeou-o professor de Filologia na Universidade de Bolonha.


No Congresso Internacional de Psicologia de Paris, em 1900, o Sr. Charles Richet, da Academia de Medicina, apresentou em assembléia geral, reunidas todas as seções, um menino espanhol de 3 anos e meio de idade, chamado Pepito Arriola, que toca e improvisa ao piano árias variadas, muito ricas de sonoridade. Reproduzimos a comunicação feita pelo Sr. Richet aos congressistas na sessão de 21 de agosto de 1900, a respeito desse menino, antes da sua audição musical: (163)


“Vou transcrever fielmente o que diz sua mãe do modo pelo qual descobriu os extraordinários dons musicais do jovem Pepito:


– “Tinha o menino 2 anos e meio, aproximadamente, quando, pela primeira vez, se me depararam casualmente as suas aptidões musicais. Nessa época recebi de um amigo meu, músico, uma composição de sua lavra e pus-me a tocá-la ao piano com bastante freqüência. É provável que o menino a ouvisse com atenção, mas não reparei nisso. Ora, certa manhã ouço tocar numa sala contígua a mesma ária, com tanta mestria e justeza que quis saber quem assim tomava a liberdade de tocar piano em minha casa. Entrei na sala e vi o meu pequeno, que estava só, a tocar a ária; estava sentado num assento alto para onde subira sozinho e, ao ver-me, pôs-se a rir e disse-me: “Que me diz, mamãe?” Acreditei que se realizava um verdadeiro milagre.”


A partir desse momento o pequeno Pepito continuou a tocar, sem que sua mãe lhe tenha dado lições, às vezes as árias que ela própria tocava diante dele ao piano, outras vezes, árias que ele inventava.


Não tardou a adquirir capacidade suficiente para permitir-lhe, no dia 4 de dezembro de 1899, isto é, com 3 anos incompletos, tocar diante de um auditório bastante numeroso de críticos e músicos; em 26 de dezembro, com 3 anos e 12 dias, tocou no Palácio Real de Madrid diante do rei e da rainha mãe. Nessa ocasião tocou seis composições musicais de sua autoria, que foram aplaudidas.


Não sabe ler, quer se trate de música ou do alfabeto; não tem talento especial para o desenho, mas se entretém às vezes a escrever árias musicais, escrita que não tem, entenda-se bem, nenhum sentido. É, entretanto, engraçado vê-lo pegar num papelzinho, pôr-lhe como cabeçalho uns rabiscos (que significam, ao que parece, a natureza do trecho, sonata, habanera, valsa, etc.); depois, por baixo, figurar linhas que serão a pauta, com uma borradela que quer dizer clave de sol e linhas pretas que, afirma ele, são notas. Olha, então, para esse papel, com satisfação, põe-no no piano e diz: “Vou tocar isto” e, com efeito, tendo diante da vista esse papel informe, improvisa de maneira admirável.


Para metodicamente estudar a maneira como ele toca piano, separarei a execução da invenção.


Execução – A execução é infantil; vê-se que ele imaginou a dedilhação em todas as suas partes sem nenhuma lição. Tem, não obstante, dedilhação bastante desembaraçada, tanto quanto lho permite a pequenez da mão, que não abrange a oitava. Para resolver a dificuldade imaginou, o que é curioso, substituir a oitava por arpejos habilmente executados e muito rápidos. Toca com as duas mãos, que muitas vezes cruza para obter certos efeitos ou certas harmonias. Às vezes também, como os pianistas de renome, levanta a mão a grande altura, com a maior seriedade, para deixá-la cair exatamente na nota que quer. Não é provável que isso lhe tenha sido ensinado, porque, na maneira de tocar de sua mãe, que aliás tem boa execução, nada há de análogo. Pode tocar árias de bravura com agilidade por vezes admirável e vigor surpreendente numa criança de sua idade; mas, apesar dessas qualidades, força é reconhecer que a execução é desigual. De repente, depois de alguns momentos de prelúdio, põe-se a tocar, como se estivesse inspirado, com agilidade e precisão.


Ouvi-o tocar trechos de muita dificuldade, uma habanera galiciana e a Marcha turca de Mozart, com habilidade em certas passagens.


A harmonia, ainda mais do que a dedilhação, é extraordinária. Acha, quase sempre, o acorde justo e, se hesita, como lhe sucede no princípio de um trecho, tateia alguns segundos; depois, continuando, acha a verdadeira harmonia. Não se trata de uma harmonia muito complicada; quase sempre consiste em acordes de muita simplicidade; mas por vezes inventa alguns que causam grande surpresa.


Para falar com rigor, o que mais assombra não é a dedilhação, nem a harmonia, nem a agilidade, mas a expressão; tem uma riqueza de expressão admirável. Seja triste, alegre, marcial ou enérgico o trecho musical, a expressão é arrebatadora. Uma vez fiz tocar à mãe a mesma música que a ele. Sem dúvida, ela tocava-a muito melhor, sem notas erradas, nem hesitações, nem tateios, nem repetições, mas o bebezinho tinha muito mais expressão.


Muitas vezes mesmo é tão forte essa expressão, tão trágica até em certas árias melancólicas ou fúnebres, que se tem a sensação de que Pepito não pode, com a sua dedilhação imperfeita, exprimir todas as idéias musicais que nele fremem, de maneira que quase me atreveria a dizer que ele é muito maior músico do que aparenta...


Não somente executa as músicas que acaba de ouvir tocar no piano, mas pode também, posto que com mais dificuldade, executar ao piano as árias que ouviu cantar. “Causa pasmo vê-lo então achar, imaginar, reconstituir os acordes do contraponto e da harmonia, como o poderia fazer um músico perito.” Numa experiência feita há pouco tempo, um amigo meu cantou-lhe uma melodia muito complexa. Depois de tê-la ouvido cinco ou seis vezes, sentou-se ao piano, dizendo que se tratava de uma habanera, o que era verdade, e repetiu-a, senão no todo, pelo menos nas partes essenciais.


Invenção – É muitas vezes bem difícil, quando se ouve um improvisador, distinguir o que é invenção do que é reprodução, pela memória, de árias e trechos musicais já ouvidos. É certo, entretanto, que, quando Pepito se põe a improvisar, raras vezes lhe falha a inspiração e acha, muitas vezes, melodias extremamente interessantes, que pareceram mais ou menos originais a todos os assistentes. Há uma introdução, um meio, um fim; há, ao mesmo tempo, uma variedade e uma riqueza de sons que talvez admirassem, se se tratasse de um músico de profissão, mas que, numa criança de três anos e meio, causam verdadeira estupefação.”


Desde essa época prosseguiu o jovem artista o curso dos seus triunfos cada vez maiores. Tendo-se feito violinista incomparável, causa a admiração do mundo musical com o seu talento prematuro. Deu também muitos concertos em Leipzig e representações musicais em S. Petersburgo.(164)


Assinalava-se de Rennes, a 28 de novembro de 1911, ao Le Matin, o caso de outra criança musicista:


“Nossa cidade possui um novo Mozart. Esse pequeno prodígio, filho de um empregado da Posta, nasceu em Rennes a 8 de outubro de 1904; tem, pois, 7 anos e dois meses. O jovem René Guillon, tal é o nome dessa criança extraordinária, compõe, não obstante sua idade, e executa ao piano sinfonias, sonatas, melodias, fugas, duos para piano e violão, duos para violões. Ainda bebê já parecia com disposição para o desenho; sentiu inclinação muito viva para a música, em seguida à audição da Marcha Fúnebre de Chopin, executada pela banda do 41º de Linha. Posto que nunca tivesse tocado um único instrumento, assim que entrou em casa dos pais, pôs-se ao piano e executou a célebre peça.


Desde esse momento, começou a compor, ao correr da inspiração, pedaços de música que fazem a admiração dos professores do Conservatório.”


Ajuntemos a essa lista dos meninos músicos o nome de Willy Ferreros que, com a idade de 4 anos e meio, dirigia com maestria a orquestra do Folies-Bergère, de Paris, depois a do Cassino de Lyon. Eis o que a seu respeito nos diz, no número de 17 de fevereiro de 1911, a revista Comédia:


“É um homenzinho que traz já garbosamente o traje negro, as calças de cetim, o colete branco e as botinas de verniz. Tendo na mão a batuta, dirige com desembaraço, segurança e precisão incomparáveis uma orquestra de 80 músicos, sempre atento às menores particularidades, escrupuloso observador do ritmo...


Há dias, ao acaso de uma viagem ao Meio-dia (Sul da França), o Sr. Clément Baunel descobriu esse pequeno prodígio; entusiasmou-se com tal instinto musical e trouxe o menino para Paris, que conquistou desde ontem à tarde. Ao correr da revista do Folies-Bergère, Willy Ferreros regeu, com os Cadets, de Souza, a Sylvia, de Léo Delibes. Foi um extraordinário acontecimento.”


O Intransigeant, de 22 de junho de 1911, acrescenta que ele é igualmente admirável na direção das Sinfonias de Haydn, na marcha do Tannhauser e na Dança de Anitra, de Grieg.


Citemos também Le Soir, de Bruxelas,(165) na enumeração que faz de algumas crianças notáveis de além-mar:


“Entre os rapazes-prodígio do Novo Mundo, devemos citar um, o engenheiro George Steuber, que conta 13 primaveras, e Harry Dugan, que ainda não completou 9 anos. Harry Dugan acaba de fazer uma excursão de 1.000 milhas (cerca de 1.600 quilômetros) através da República estrelada, onde realizou negócios colossais para a casa que representa.


Por mais incrível que pareça, a Universidade de Nova Orleans acaba de passar diploma de médico a um estudante com 5 anos de idade, chamado Willie Gwin. Os examinadores declararam depois, em sessão pública, que o novel Esculápio era o mais sábio osteólogo a que haviam passado diploma. Willie Gwin é filho de um médico conhecido.


A esse propósito, os jornais transatlânticos publicam uma lista de meninos-prodígio. Um deles, mal contando 11 anos de idade, fundou recentemente um jornal intitulado The Sunny Home, cuja tiragem, no terceiro número, era já de 20 mil exemplares. Pierre Loti e Sully Prudhomme são colaboradores do Chatterton americano.


Entre os pregadores célebres dos Estados Unidos, cita-se o jovem Dennis Mahan, de Montana, que, desde 6 anos, causava pasmo aos fiéis pelo seu profundo conhecimento das Escrituras e pela eloqüência da sua palavra.”


Juntemos a essa lista o nome do famoso engenheiro sueco Ericson, que aos 12 anos era inspetor no grande canal marítimo de Suez e tinha às suas ordens 600 operários.(166)


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Voltemos ao problema das crianças-prodígio e examinemo-lo nos seus diferentes aspectos. Duas hipóteses foram aventadas para explicá-lo: a hereditariedade e a mediunidade.


A hereditariedade é, ninguém o ignora, a transmissão das propriedades de um indivíduo aos seus descendentes; as influências hereditárias são consideráveis nos dois pontos de vista, físico e psíquico. A transmissão do temperamento, dos traços do caráter e da inteligência de pais a filhos, é muito sensível em certas pessoas. Por diferentes títulos, encontramos em nós não somente as particularidades orgânicas dos nossos progenitores diretos ou dos nossos antepassados, mas também suas qualidades ou seus defeitos.


No homem atual revive a misteriosa linhagem inteira de seres, de cujos esforços seculares para uma vida mais elevada e completa ele é o resumo; mas a par das analogias há divergências mais consideráveis. Os membros de uma mesma família, posto que apresentando semelhanças, traços comuns, oferecem também, às vezes, diferenças que se destacam bem. O fato pode ser verificado por toda parte, ao redor de nós, em cada família, em irmãos e irmãs e até em gêmeos. Muitos destes, de semelhança física nos primeiros anos, a ponto de custar a diferençá-los um do outro, apresentam no decurso do seu desenvolvimento diferenças sensíveis de feições, caráter e inteligência.


Para explicar essas dessemelhanças será, pois, necessário fazer intervir um novo fator na solução do problema; serão os antecedentes do ser, que lhe permitiram aumentar suas faculdades, sua experiência de vidas em vidas e constituir-se uma individualidade, trazendo um cunho próprio de originalidade e as próprias aptidões.


Só a lei dos renascimentos poderá fazer-nos compreender como certos Espíritos encarnados mostram, desde os primeiros anos, a facilidade de trabalho e a assimilação que caracterizam as crianças-prodígio. São os resultados de imensos labores que familiarizaram esses Espíritos com as artes ou as ciências em que primam. Longas investigações, estudos e exercícios seculares deixaram impressas no seu invólucro perispiritual marcas profundas que geram uma espécie de automatismo psicológico. Nos músicos, notadamente, essa faculdade cedo se manifesta, por processos de execução que espantam os mais indiferentes e deixam perplexos sábios como o Prof. Richet.


Existem, nesses jovens, reservas consideráveis de conhecimentos armazenados na consciência profunda e que, daí, transbordam para a consciência física, de modo que produzem as manifestações precoces do talento e do gênio. Posto que parecendo anormais, não são, entretanto, mais do que conseqüência do labor e dos esforços continuados através dos tempos. É a essa reserva, a esse capital indestrutível do ser, que F. Myers chama consciência subliminal e que se encontra em cada um de nós; revela-se não só no senso artístico, científico ou literário, mas também por todas as aquisições do Espírito, tanto na ordem moral, quanto na ordem intelectual.


A concepção do bem, do justo, a noção do dever, são muito mais vivas em certos indivíduos e em certas raças do que noutros; não resultam somente da educação atual, como se pode reconhecer por uma observação atenta dos indivíduos nas suas impulsões espontâneas, mas também do cabedal próprio que trazem ao nascer. A educação desenvolve esses germens nativos, permite que se expandam e produzam todos os seus frutos; mas, por si só, seria incapaz de incubar tão profundamente aos recém-vindos as noções superiores que lhes dominam toda a existência, o que cotidianamente é verificado nas raças inferiores, refratárias a certas idéias morais e sobre quem a educação pouca influência tem.


Os antecedentes explicam, igualmente, as anomalias estranhas de seres com caráter selvagem, indisciplinado, malfazejo, que aparecem de repente em centros honestos civilizados. Têm-se visto filhos de boa família cometerem roubos, atearem incêndios, praticarem crimes com audácia e habilidade consumadas, sofrerem condenações e desonrarem o nome que usavam; em certas crianças citam-se atos de ferocidade sanguinária que não encontram explicação nem em seus parentes próximos, nem em sua ascendência. Adolescentes, por exemplo, matam os animais domésticos que lhes caem nas mãos, depois de os terem torturado com rematada crueldade.


Em sentido oposto podem-se registrar casos extraordinários de dedicação, considerada a idade dos que os praticam; salvamentos são efetuados com reflexão e decisão por crianças de dez anos de idade ou menos. Tais indivíduos, como os precedentes, parecem trazer para este mundo disposições particulares que não se encontram nos seus parentes. Assim como se vêem anjos de pureza e doçura nascerem e crescerem em meios grosseiros e depravados, assim também se encontram ladrões e assassinos em famílias virtuosas, num e noutro caso em condições tais que nenhum precedente atávico pode dar a chave do enigma.


Todos esses fenômenos, na sua variedade infinita, têm sua origem no passado da alma, nas numerosas vidas humanas que ela percorreu; cada um traz ao nascer os frutos da sua evolução, a intuição do que aprendeu, as aptidões adquiridas nos diversos domínios do pensamento e da obra social, na Ciência, no comércio, na indústria, na navegação, na guerra, etc.; traz habilidade para determinada coisa em particular, conforme sua atividade se tenha exercitado nesse ou naquele sentido.


O Espírito tem capacidade para os estudos mais diversos; mas, no curso limitado da vida terrestre, por efeito das condições ambientes, por causa das exigências materiais e sociais, geralmente só se aplica ao estudo de um número restrito de questões e, desde que sua vontade se encaminhou para qualquer dos vastos domínios do saber, em razão das suas tendências e das noções em si acumuladas, sua superioridade nesse sentido declara-se e define cada vez mais; repercute de existência em existência, revelando-se, em cada vinda à arena terrestre, por manifestações cada vez mais precoces e mais acentuadas. Daí, as crianças-prodígio e, em forma menos distinta, as vocações, as predisposições nativas; daí o talento, o gênio, que são o resultado de esforços perseverantes e contínuos para um objetivo determinado.


Que a alma é chamada, todavia, a entrar na posse de todas as formas do saber e não a restringir-se a algumas necessidades de estágios sucessivos, demonstra-se pelo simples fato da lei de um desenvolvimento sem limites. Do mesmo modo que a prova das vidas anteriores é estabelecida pelas aquisições realizadas antes do nascimento, a necessidade das vidas futuras impõe-se como conseqüência dos nossos atos atuais, conseqüência que, para campo de ação, exige condições e meios em harmonia com o estado das almas. Atrás de nós temos um infinito de promessas e esperanças; mas, de todo esse esplendor de vida, a maior parte dos homens só vê e só quer ver o mesquinho fragmento da existência atual, existência de um dia, que eles crêem sem véspera e sem amanhã. Daí a fraqueza do pensamento filosófico e da ação moral na nossa época.


O trabalho anterior que cada Espírito efetua pode ser facilmente calculado, medido pela rapidez com que ele executa de novo um trabalho semelhante, sobre um mesmo assunto, ou também pela prontidão com que assimila os elementos de uma ciência qualquer. Deste ponto de vista, é de tal modo considerável a diferença entre os indivíduos, que seria incompreensível sem a noção das existências anteriores.


Duas pessoas igualmente inteligentes, estudando determinada matéria, não a assimilarão da mesma forma; uma alcançar-lhe-á à primeira vista os menores elementos, a outra só à custa de um trabalho lento e de uma aplicação porfiada conseguirá penetrá-la. É que uma já tem conhecimento dessa matéria e só precisa recordá-la, ao passo que a outra se encontra pela primeira vez dentro de tais questões. O mesmo se dá com certas pessoas que facilmente aceitam tal verdade, tal princípio, tal ponto de uma doutrina política ou religiosa, ao passo que outras só com o tempo e à força de argumentos se convencem ou deixam de convencer-se. Para umas é coisa familiar ao seu espírito e para outras é estranha. Vimos que as mesmas considerações são aplicáveis à variedade tão grande de caracteres e das disposições morais. Sem a noção das preexistências, a diversidade sem limites das inteligências e das consciências ficaria sendo um problema insolúvel e a ligação dos diferentes elementos do “eu”, num todo harmonioso, tornar-se-ia fenômeno sem causa.


O gênio, dizíamos, não se explica pela hereditariedade nem pelas condições do meio. Se a hereditariedade pudesse produzir o gênio, ele seria muito mais freqüente. A maior parte dos homens célebres teve ascendentes de inteligência medíocre e sua descendência foi-lhes notoriamente inferior. Sócrates e Joana d'Arc nasceram de famílias obscuras. Sábios ilustres saíram dos centros mais vulgares, por exemplo: Bacon, Copérnico, Galvani, Kepler, Hume, Kant, Locke, Malebranche, Réaumur, Spinoza, Laplace, etc. J.-J. Rousseau, filho de um relojoeiro, apaixona-se pela Filosofia e pelas Letras na loja do seu pai; D'Alembert, enjeitado, foi encontrado na soleira da porta de uma igreja e criado pela mulher de um vidreiro. Nem a ascendência nem o meio explicam as concepções geniais de Shakespeare.


Os fatos não são menos significativos, quando consideramos a descendência dos homens de gênio. Seu poder intelectual desaparece com eles, não se encontra em seus filhos. A prole conhecida de tal ou tal grande poeta ou matemático é incapaz das obras mais elementares nessas duas espécies de trabalhos; a maior parte dos homens ilustres teve filhos estúpidos ou indignos. Péricles gerou dois patetas, que foram Parallas e Xântipo. Dessemelhanças de outra natureza, mas igualmente acentuadas, encontram-se em Aristipo e seu filho Lisímaco, em Tucídides e Milésias. Sófocles, Aristarco e Temístocles não foram mais felizes com os filhos. Que contraste entre Germânico e Calígula, entre Cícero e seu filho, Vespasiano e Domiciano, Marco Aurélio e Cômodo! E que dizer dos filhos de Carlos Magno, de Henrique IV, de Pedro, o Grande, de Goethe, de Napoleão?


Há, contudo, casos em que o talento, a memória, a imaginação, as mais altas faculdades do espírito parecem hereditárias. Essas semelhanças psíquicas entre pais e filhos explicam-se pela atração e simpatia; são Espíritos similares atraídos uns para os outros por inclinações análogas e que antigas relações uniram. Generans generat sibi simile. Tal fato pode, no que diz respeito às aptidões musicais, ser verificado nos casos de Mozart e do jovem Pepito, os quais são, no entanto, muito superiores aos seus ascendentes. Mozart brilha entre os seus como um sol entre planetas obscuros. As capacidades musicais da sua família não bastam para fazer-nos compreender que aos quatro anos tenha podido revelar conhecimentos que ninguém lhe havia ensinado e mostrar ciência profunda das leis da harmonia. De todos os Mozart, foi o único que se tornou célebre. Evidentemente as altas Inteligências, a fim de manifestarem com mais liberdade suas faculdades, escolhem, para reencarnar, um meio em que haja comunhão de gostos e em que os organismos materiais se vão, de geração em geração, acomodando às aptidões, cuja aquisição elas prosseguem. Dá-se isso particularmente com os grandes músicos, para quem condições especiais de sensação e percepção são indispensáveis; mas, na maior parte dos casos, o gênio aparece no seio de uma família sem antecessor nem sucessor no encadeamento das gerações. Os grandes gênios moralizadores, os fundadores de religiões, Lao-Tse, Buda, Zaratustra, Cristo e Maomé pertencem a essa classe de Espíritos; à mesma classe pertencem também poderosas Inteligências que tiveram neste mundo os nomes imortais de Platão, Dante, Newton, G. Bruno, etc.


Se as exceções fulgurantes ou funestas, criadas numa família pelo aparecimento de um homem de gênio ou de um criminoso, fossem simples casos de atavismo, dever-se-ia encontrar na genealogia respectiva o ancestral que serviu de modelo, de tipo primitivo a essa manifestação; ora, quase nunca isso se dá, quer num, quer noutro sentido. Poderiam perguntar-nos como conciliaremos essas dessemelhanças com a lei das atrações e das semelhanças, que parece presidir à aproximação das almas? A penetração em certas famílias de seres sensivelmente superiores ou inferiores, que vêm dar ou receber ensinamento, exercer ou sofrer novas influências, é facilmente explicável; pode resultar do encadeamento dos ensinos comuns que, em certos pontos, se tornam a unir e se enlaçam como conseqüência de afeições ou ódios mútuos do passado, forças igualmente atrativas que reúnem as almas em planos sucessivos na vasta espiral de sua evolução.


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Seria possível explicar pela mediunidade os fenômenos acima apontados? Alguns o tentaram. Nós mesmos, numa obra precedente,(167) reconhecemos que o gênio deve muito à inspiração e que esta é uma das formas da mediunidade. Mas acrescentávamos que, mesmo nos casos em que essa faculdade especial nitidamente se desenha, não se pode considerar o homem de gênio como um simples instrumento, assim como o é, antes de tudo, o médium propriamente dito. O gênio, dissemos nós, é principalmente aquisição do passado, o resultado de pacientes estudos seculares, de lenta e dolorosa iniciação. Esses antecedentes desenvolveram no ser uma profunda sensibilidade que o torna acessível às influências elevadas.


Há diferenças apreciáveis entre as manifestações intelectuais das crianças-prodígio e a mediunidade tomada no seu sentido geral. Esta tem um caráter intermitente, passageiro, anormal. O médium não pode exercer sua faculdade a cada momento; são precisas condições especiais, difíceis, às vezes, de reunir, ao passo que as crianças-prodígio podem utilizar seus talentos a cada passo, constantemente, como nós mesmos o podemos fazer com as nossas próprias aquisições mentais.


Se analisarmos com cuidado os casos apontados, reconheceremos que o gênio dos jovens prodígios lhes é muito pessoal; a aplicação dele é regulada por sua própria vontade. Suas obras, por mais originais e admiráveis que pareçam, ressentem-se sempre da idade de seus autores e não têm o cunho que apresentariam se emanassem de uma alta Inteligência estranha. Há em sua maneira de trabalhar e proceder ensaios, perplexidades, tateamentos, que não se produziriam se eles fossem os instrumentos passivos de uma vontade superior e oculta; foi o que verificamos nomeadamente em Pepito, de cujo caso nos ocupamos mais largamente.


Seria também admissível, sem daí advir enfraquecimento para a doutrina da reencarnação, que em certos indivíduos a aquisição pessoal e a inspiração exterior se combinem e completem uma pela outra.


É sempre a essa doutrina que se deve ir buscar armas quando se trata de atacar, por qualquer lado que seja, o problema das desigualdades. As almas humanas estão mais ou menos desenvolvidas segundo suas idades e, principalmente, segundo o emprego que fizeram do tempo que têm vivido; não fomos todos lançados no mesmo instante ao turbilhão da vida; não temos caminhado todos a passo igual, não temos desfiado todos do mesmo modo o rosário de nossas existências. Percorremos uma estrada infinita. Daí procede a razão pela qual tão diferentes nos parecem as nossas situações e os nossos valores respectivos; mas para todos o alvo é o mesmo. Sob o açoite das provas, o aguilhão da dor, sobem todos, todos se elevam. A alma não é feita de uma vez só; a si mesma se faz, se constrói através dos tempos. Suas faculdades, suas qualidades, seus haveres intelectuais e morais, em vez de se perderem, capitalizam-se, aumentam, de século para século. Pela reencarnação cada qual vem para prosseguir nesse trabalho, para continuar a tarefa de ontem, a tarefa de aperfeiçoamento que a morte interrompeu. Daí a brilhante superioridade de certas almas que têm vivido muito, granjeado muito, trabalhado muito. Daí os seres extraordinários que aparecem aqui e ali na História e projetam vivos clarões no caminho que a humanidade percorre. Sua superioridade vem somente da experiência e dos labores acumulados.


Considerada sob esse aspecto, a marcha da humanidade reveste aspecto grandioso. A humanidade vai, vagarosamente, saindo da escuridão das idades, emerge das trevas da ignorância e da barbaria e avança pausadamente no meio dos obstáculos e das tempestades; sobe pela via áspera e, a cada volta do caminho, lobriga melhor os altos cimos: as cumeadas luminosas onde imperam a sabedoria, a espiritualidade, o amor.


Essa marcha coletiva é também a marcha individual, a de cada um de nós, porque essa humanidade somos nós mesmos, são os mesmos seres que, depois de certo tempo de descanso no espaço, voltam, de século a século, até que estejam preparados para uma sociedade melhor, para um mundo mais belo. Fizemos parte das gerações extintas e havemos de pertencer às gerações futuras. Formamos, na realidade, uma imensa família humana em marcha para realizar o plano divino nela escrito, o plano dos seus magníficos destinos.


Para quem quer prestar atenção, um passado inteiro vive e freme em nós. Se a História, se todas as coisas antigas têm tantos atrativos a nossos olhos, se avivam em nossas almas tantas impressões profundas, às vezes dolorosas, se nos sentimos viver a vida dos homens de outrora, sofrer os seus males, é porque essa história é a nossa. A solicitude com que estudamos, com que agasalhamos a obra de nossos antepassados, as impulsões súbitas que nos levam para tal causa ou tal crença, não têm outra razão de ser. Quando percorremos os anais dos séculos, apaixonando-nos por certas épocas, quando todo o nosso ser se anima e vibra às recordações heróicas da Grécia ou da Gália, da Idade Média, das Cruzadas, da Revolução, é o passado que sai da sombra, que se anima e revive. Através da teia urdida pelos séculos, tornamos a encontrar as próprias angústias, as aspirações, os dilaceramentos de nosso ser. Momentaneamente essa recordação está em nós coberta por um véu; mas se interrogássemos nossa subconsciência, ouviríamos sair das suas profundezas vozes, às vezes vagas e confusas, outras vezes estridentes. Essas vozes falar-nos-iam de grandes epopéias, de migrações de homens, de cavalgadas furiosas que passam como furacões, arrebatando tudo para a escuridão e para a morte, entreter-nos-iam também com as vidas humildes, despercebidas, com as lágrimas silenciosas, com os sofrimentos esquecidos, com as horas pesadas e monótonas passadas a meditar, a produzir, a orar no silêncio dos claustros ou com a vulgaridade das existências pobres e desgraçadas.


Em certas horas, um mundo inteiro obscuro, confuso, misterioso, acorda e vibra em nós, um mundo cujos murmúrios, cujos rumores nos comovem e nos inebriam. É a voz do passado. No transe do sonambulismo é ela que nos fala e nos conta as vicissitudes da nossa pobre alma, errante através do mundo; diz-nos que o nosso “eu” atual é feito de numerosas personalidades, que nele se vão juntar como os afluentes num rio; que o nosso princípio de vida animou muitas formas, cuja poeira repousa entre os destroços dos impérios, sob os restos das civilizações extintas. Todas essas existências deixaram, no mais profundo de nós mesmos, vestígios, lembranças, impressões indeléveis.


O homem que se estuda e observa, sente que tem vivido e que há de viver; herda de si mesmo, colhendo no presente o que semeou no passado e semeando para o futuro.


Assim se afirmam a beleza e a grandeza da concepção das vidas sucessivas, que vêm completar a lei de evolução entrevista pela Ciência. Exercendo sua ação simultaneamente em todos os domínios, ela distribui a cada um segundo suas obras e mostra-nos, acima de tudo, essa majestosa lei do progresso, que rege o universo e dirige a vida para estados cada vez mais belos, cada vez melhores.